Sexta-feira da Descoberta
Como em
todas as sextas-feiras, me encontro no mesmo lugar. Após um dia de trabalho na escola, me dispo
de minha saia rodada de cintura altura alta, da minha blusa branca de mangas
compridas. Descalço minhas sapatilhas azuis. Cato minha camisola preta com
rendas cor de creme no apartamento mal iluminado. Cambaleante encontro o
interruptor da luz. Com o quarto banhado de uma luz excessivamente clara, meus
olhos verdes estranham-na. Enquanto
minha visão procura um ponto de conforto, esbarro-me com a visão por de trás da
janela do meu quarto no décimo andar. Como ele havia surgido? Quem era aquele?
Meus olhos
grandes não davam contam de enxergar bem de longe, ainda mais durante a noite. Após
achar meus óculos sob a mesa de cabeceira, pude ter uma visão privilegiada.
No prédio em
frente ao meu, aquele do lado do Banco do Brasil, estava lá ele a escrever. Sua
máquina de escrever laranja e os dedos furiosos que datilografavam. Pela sua
aparência, o conteúdo deveria ser poesia. Poesia marginalizada, daquelas que
brotam do asfalto e são negadas pela sociedade pura demais para falar sobre
gozo e cigarros.
Os cabelos
encaracolados e castanhos bagunçados de tanto suas mãos ansiosas procurarem
soluções (ou inspirações). Os óculos arredondados de armação escura e lentes
fundas lhe enfeitavam a face delicada. Porém, havia o contraste de seu rosto
angelical com sua barba malfeita.
O quarto era
um cenário típico de um homem de aproximadamente trinta anos, amante da leitura
e dono de um mistério que desejo perscrutar.
Sábado
O dia parece se arrastar, como todos os meus finais de semanas
tediosos. Sem convites para sair com amigos e sem provas para corrigir.
Ele prepara café e o bebe vagorosamente. Rio da cena que segue:
desastrado inunda seus cadernos com o líquido escuro. Corre até algum outro canto da casa do qual
não tenho o privilégio de ver e volta com um pano para a limpeza do estrago.
Espero que ele não se sinta como em um reality show, apesar de eu ser sua espectadora.
Não o observo 24 horas porque a pia me chama, o meu estômago ronca e o trabalho
me puxa pelos cabelos. E lá vou eu, professora pobre, passar uma boa parte do
meu tempo em uma atividade mal remunerada.
Aturar desaforo da diretora balofa, da coordenadora pedagógica que
acredita que mentir para os alunos é um jeito de ensinar. Largo a minha visão
preferida, pelo balanço dos ônibus que me largam em frente à escola.
Pelo menos o sábado é dia de overdose dele. E ainda, sorrateiramente o
observo, sem escancarar minha janela. Sem dar qualquer tipo de sinal de vida.
Se duvidar, ele não sabe nem da minha escrota existência.
Domingo
Falam que meus olhos verdes são doces. Mas é ilusão. Sou azeda como o
pior limão existente (e sou bem piegas também). Taxam-me de louca por ser sincera e enfrentar
o que as pessoas temem. Gosto de escancarar minhas janelas mesmo. Esconde-esconde
não é para mim. Aprecio encarar a vida de frente. Assim, como amo apreciar a
vista que inunda meus olhos: o morador do edifício Jacarandás. Esse é o nome de
sua morada. Morada do moço afável que devora livros, que tem como vício o café
e escreve freneticamente em uma máquina de escrever jurássica, que não foi substituída
pelo incrível aparelho tecnológico que chamamos de notebook.
Agora faço questão de ser vista. Quero ser notada, não somente como a
sombra por de trás da cortina clara. Quero, mesmo que isso seja brega, que ele
possa observar minha alma. Como um caleidoscópio, quero mostrar minhas cores.
Então visto-me, como se fosse para uma festa, debruço-me na janela,
como aqueles enfeites de negras pintadas em madeiras que adornam cozinhas.
Ele nem pensou em olhar pela janela.
Desisto de ser vista por enquanto. Mal-humorada, preparo um chá de
camomila e me sento em minha cama com o colchão vencido que me causa grandes
dores na coluna. Acho meu livro do Caio
Fernando e mergulho no mundo imaginário de Passo da Guanxuma, enquanto ele
desaba em sua poltrona lilás com o jornal do dia.
Após uma breve pausa em minha leitura, penso na sequência de cenas que
observei desde o dia da descoberta. Confesso que me sinto como se trabalhasse
em um panóptico, mas com o olhar cauto a somente um detento. Talvez ele não
saiba que assisto sua vida diária como um reality show, nem que ele é um ator
social dessa tal de Sociedade do Espetáculo que Guy Debord propôs há uns tempos
atrás.
Sexta-feira das Cobertas
Sinto-me uma
vadia. Porém, uma vadia feliz, que obteve êxito em uma conquista amorosa
mirabolante. Ontem, depois de dias observando meu objeto de estudo (e por que
não de desejo?), vi-o se arrumar para sair. Decidi então que era a hora certa.
Bastava de paixões platônicas, afinal de contas, meus onze anos desceram pelo
ralo com meus cabelos loiros antes do tingimento.
Peguei a bolsa
de cima do sofá, fechei a porta com uma brutalidade que não sabia que existia
dentro de mim, minhas pernas nervosas não obedeciam aos comandos de meu cérebro
em desatino.
E se ele
fosse encontrar alguém? Teria ele alguém com quem partilhar o café e conversar
sobre literatura? Seria essa pessoa contemplada com um “plus” em sua cama?
Sinto-me
meio depravada, fácil e mesquinha.
Consegui
chegar a tempo de vê-lo entrar no supermercado da outra quadra da rua. Como um
detetive, cuidei para que não me visse. Minha coragem ainda estava
vacilante.
Fiz de conta
que iria comprar jornal e pão. Até eu me surpreendi com minha interpretação
maravilhosa de pessoa normal. Entrei na mesma fila do caixa que ele. Observei
sua fisionomia, avaliei-o dos pés a cabeça. Observei suas compras também: café,
açúcar, papel higiênico, miojo e um livro pocket (desses que ficam estrategicamente
em mercados para venderem ainda mais).
Puxei umas
conversas avulsas que minha memória fez questão de tingir de branco. Contei a verdade: que eu o observava há
alguns dias e que eu o achava interessante. O fim da conversa foi em meu quarto, regado a
vinho e debatendo sobre livros de Walt Whitman, Shakespeare, Drummond, Machado
e Leminski. Até que o assunto acabou em gemidos,
suores e outros produtinhos da natureza humana em meus lençóis.
Na hora em
que ele partiu o encanto todo que o cercava foi-se também. Seu ar de filósofo, vintage, romântico barato
que ouve Caetano Veloso evaporou. Entediante demais para mim. Acho que voltarei
a olhar o Jornal Nacional quando chegar a minha casa depois do trabalho.
Agora irei
para a área de serviço lavar os lençóis e rezar para não enxergar nenhum
vizinho novo. O encanto é sempre o mesmo, pelo menos inicialmente. E entre
minhas loucuras e a concretude de algumas ações perde-se o desejo. Quando o que
quero se aproxima, cubro-me de incerteza e um novo querer me inunda. E como
ciclo vicioso, reformulo opiniões e decido mudar meu destino constantemente.
Devo ser famosa pela rua, a louca do 1001 que tem um relacionamento por semana.
De promíscua
sei que as vizinhas me chamam. Já ouvi boatos de que eu estava com AIDS. Mas
realmente sofro é do mal de indecisão. E
ninguém sabe como é confuso e difícil carregar milhões de ideias e ter de optar
por pouquíssimas.
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